domingo, 9 de agosto de 2009

um sorriso

um sorriso

naquele dia tinha acordado mais cedo. andava preocupada com a ida ao médico do francisco. na última consulta, as análises tinham alguns elementos estranhos e maria não queria estar desprevenida, uma vez que, se o problema fosse deveras grave, muita coisa se alteraria nas suas vidas.

levantou-se. foi para a casa de banho e pôs a água a correr. soube-lhe bem sentir a água quente a cair no corpo. agora, eram apenas aqueles momentos os únicos em que podia relaxar.

depois de já estar vestida e antes de descer para ir preparar o pequeno-almoço, foi ao quarto acordar o francisco.

dormia profundamente. ficou a olhar para ele. como era bonito o seu sorriso, mesmo a dormir... fora, aliás, aquele trejeito brincalhão de menino que a tinha cativado e a tinha feito olhar de maneira diferente para ele.

estavam na esplanada do café, em mesas separadas, mas no mesmo grupo de amigos. quer dizer, eram mais conhecidos, uma vez que amigos tinha apenas, ali, a cristina e o namorado.

tinham sido apresentados durante o jantar; o francisco era amigo do pedro, namorado de cristina. falaram durante o jantar, já que ficaram frente a frente. mas ali na esplanada tinham ficado em mesas separadas... e sorriam apenas um para o outro.

agora, já passados seis anos, continuavam a sorrir assim. o sorriso era o mesmo, ainda que cada vez mais cúmplice. o dele quase traquina.

que novidades teria o médico?

chamou-o: francisco, acorda.

sorriso perdido

sorriso perdido

um dia saiu de casa e perdeu a vontade de ir para a escola.
resolveu ir à procura do mundo. percorreu cidades, países, continentes. conheceu outros sítios, outras gentes... durante esse tempo pensou que era feliz e lentamente pensou, também, que já se tinha esquecido da sua escola, da sua casa.
e o tempo foi passando.
um dia, alguém lhe disse que perdera o sorriso. ficou preocupada. viu-se ao espelho e verificou que era verdade. quis chorar e não conseguiu. disseram-lhe, então, que, para chorar, tinha de voltar a encontrar o sorriso. procurou naquela cidade. naquele país. naquele continente.
não o encontrou.
viajou por todas as cidades e países dos outros continentes por onde tinha andado. não o encontrou.
e, de repente, durante outra noite de tristeza, lembrou-se da sua casa, da sua escola.
regressou. o sorriso estava lá, à sua espera, entre a casa e a escola. o primeiro caminho que tinha aprendido a fazer.
ficou.

esgar cruel

esgar cruel

não entendo essa frieza. esse esgar cruel. essa ousadia do teu olhar. são todos os dias os mesmos e tu sem desceres. sem quereres, sequer, falar comigo.
no café, ontem, quando me pediste para ir embora, tive vontade de sair dali definitivamente. tive vontade de não te tornar a ver. tive vontade de não permitir que me voltasses a olhar assim.
saíste, de novo, sem nada para deixar que eu abraçasse...e o meu dia correu como um labirinto fechado.
chorei.
já nem a memória das tuas mãos no meu rosto eu recordo. as tuas palavras soam-me estranhas. e esse olhar perdido no vazio aterroriza-me.
tens-me presa às memórias daquele tempo em que nos ríamos e era tudo tão fácil. daquele tempo em que, depois de nos abraçarmos, eu ficava feliz e não pedia mais nada. só a tua presença.
agora, tenho medo de ti.
escondo-me nos lençóis da cama à espera que tu não venhas. que te percas nalguma rua e esqueças a morada desta porta. mas tu vens sempre. mas tu olhas-me sempre com esse perfil tão cínico.
hoje, de ti, só medo e raiva.
pergunto-me tantas vezes quando começou o vazio, quando é que as nossas almas se separaram e não encontro o dia.
terá sido numa hora, num dia, num minuto?!
diz-me.
assim, enlouqueço.
assim, perco-me destas palavras cruzadas de lágrimas e raivas, quase surdas por uma espera que nunca vai chegar.
eu sei.
estou presa.
eu sei.
eu amo-te.
eu sei que não me posso ir embora.
eu sei que tenho medo de ti!

um momento

um momento

era uma daquelas viagens que tinha de repetir todos os anos. já passara tanto tempo e ainda assim tinha esperança de voltar a encontrá-la.
as memórias pregam-nos destas partidas. esquecemos por tanto tempo factos que gostaríamos de perder para sempre e, de repente, eles surgem como se o dia do acontecimento tivesse sido ontem.
estávamos em agosto. era a festa da aldeia. nunca gostara muito daquelas actividades, mas...como a avó me pedia, por lá andava, sempre com um sorriso nos lábios a mostrar a minha alegria que só eu sabia fingida.
era o fim da tarde. as ruas estavam quase vazias, já se cheirava o frescor da noite.
e eu ainda vagueava por ali.
aquela hora até que me era agradável.
subi a rua que ia dar ao coreto. o centro da festa, onde os músicos iriam tocar toda a noite para embalar as almas nos sonhos.
quando já me preparava para regressar a casa, decidido a não voltar ali, naquela noite...reparei nela.
estava sentada nas escadas do coreto.
era alta, esguia. cabelos e olhos pretos. pelo menos foi sempre assim que a imaginei.
os cabelos soltos esvoaçavam ao sabor da brisa. aproximei-me.
não a conhecia. como estávamos "em festa", escondi a minha timidez, e perguntei-lhe quem era. olhou para mim. sorriu e manteve-se em silêncio, fixando o olhar num ponto qualquer da aldeia.
insisti que me dissesse quem era.
estava preso àquela escada. e agora não queria sair dali. ela, então, silenciosamente, levantou-se, olhou-me e disse que me diria à noite. que me esperaria ali, naquelas escadas, e que dançaria comigo a noite toda.
e foi-se embora.
eu fiquei parado. não consegui mover-me.
devem ter passado mais de vinte minutos...entretanto, tocou o sino da igreja a anunciar a hora que eu sabia ser a do jantar.
corri para casa da avó.
já depois do jantar, e como era habitual, sentei-me a ver televisão à espera que a avó lavasse a loiça. só então iríamos os dois, de novo, até ao centro da aldeia ver a festa.
como estava ansioso pelo tal encontro...acabei por fechar os olhos a sonhar...
quando os voltei a abrir, o silêncio já tomara conta da casa da avó e da festa lá fora.
ainda saí a correr até ao coreto...
mas já estava vazio.
não encontrei ninguém.
as ruas vazias.
nada.
só eu.
o tempo passou e eu vivi a minha vida. esquecido daquele momento, no dia-a-dia, e, no entanto, todos os anos, em agosto, lá volto.
um dia, hei-de encontrá-la. alta, esguia, cabelos e olhos pretos.
um dia...

a bruxa

a bruxa

era uma vez uma bruxa. era má, mesquinha e feia como todas as bruxas.
mas era feliz. as bruxas são assim.
vivia num castelo cinzento rodeada de pessoas que não sabiam que ela era bruxa. só o feiticeiro.
aliás, o feiticeiro tinha-lhe feito aquele castelo para que ela fosse feliz ali.
ele gostava dela, ainda que soubesse que ela gostava de fazer mal às pessoas; ainda que soubesse que ela gostava de ver os outros a sofrer.
ele tinha percebido há muito tempo que aquela bruxa era especial e que para a ter com ele tinha de a fazer feliz. e ela era feliz assim.
do castelo tratava ela todos os dias.
acendia as velas, limpava o pó da noite, abria as janelas e deixava entrar todas as pessoas que quisessem por ali passar.
era simpática com elas. sabia que tinha de ser, senão elas iam embora.
no entanto, sempre que tinha muita gente no castelo, deixava de ser simpática com algumas para que o castelo não ficasse muito cheio.
se houvesse muitas pessoas ela tinha de arranjar mais pessoas para acender as velas, limpar o pó da noite, abrir as janelas e deixar entrar as pessoas.
e ela não queria que isso acontecesse. por isso escolhia as pessoas com quem sabia que podia contar para estar ali.
escolhia as pessoas que ela sabia que nunca lhe iriam dizer não.
e era feliz assim.
e todas aquelas que pessoas que por ali passaram e até gostaram do castelo que o feiticeiro tinha feito, mas sabiam dizer não, acabaram sempre por partir, porque sentiram que não havia lugar para elas.
e ela, a bruxa, ficava feliz, porque era má.

essa bruxa ainda vive nesse castelo.
depois dela partir

entrou. a casa era sua. os tectos, as paredes, as janelas. tudo. era ali que queria estar. sozinho. outra vez sozinho.
a morte fora um imprevisto e agora era de novo o princípio. sem ela.
por isso as paredes estavam nuas. as janelas fechadas, as portas entreabertas...apenas o espaço para ele passar.
não se queria lembrar de nada. queria o vazio. queria a solidão. queria que todos os barcos passassem por ele sem o ver.
queria que amanhã o dia fosse o de ontem.
queria que as rosas do jardim voltassem a ser colhidas.
queria que as cores dos livros que outrora estavam nas estantes voltassem a sentir o calor do sol matinal.
queria...
queria que ela estivesse ali.
de repente parou.
ainda lá estava a cadeira. a cadeira onde ela se sentava todos os dias depois de descer as escadas.
esquecera-se da cadeira.
e agora?!
ficou petrificado, agarrado às tábuas do chão como alguém que quer pedir socorro e não consegue.
parou porque também já não tinha forças para fazer mais nada.
parou porque não se quisera lembrar de pedir que lhe levassem, também, a cadeira.
parou.
chorou.
e teve saudades.
do seu sorriso; da sua voz; do movimento do corpo quando se levantava de manhã.
do perfume; das cores das roupas; das gargalhadas cristalinas..
chorou.
lembrar-se.
a cadeira estava lá.
e teve vontade de subir as escadas, correr para o quarto, deitar-se nos lençóis que ainda teriam o seu cheiro...
mas não podia.
os degraus já não estavam lá.
também os degraus tinham partido.
ele quisera assim.
quisera esquecer.
agora era apenas uma espiral. e lá em cima estava o seu sonho.
ela morreu.
e ele queria apenas descansar.

saiu de casa.
chegou

chegou a casa.
fechou as janelas. já não tinham de estar abertas.
lá fora o vento soprava.
sentou-se.
depois levantou-se e foi para a cozinha. vagueou pelo meio dos tachos, pratos, copos, facas, garfos e colheres. sentou-se.
vestiu o pijama. tornou a levantar-se, desta vez, para ir buscar o chá que ficara em cima da bancada da cozinha.
voltou a sentar-se. fechou os olhos e, por minutos, esperou que eles se esquecessem de ver...estava ali.
o dia acabara e agora a hora era a da noite.
tornou a levantar-se. a sala estava cheia de ausências...além das vozes que povoavam as prateleiras das estantes, estava só o silêncio da sua voz e o som, cadenciado, da respiração.
estava viva - outro dia que acontecera.
a alma estava cansada. tinha de ir descansar o corpo. as pernas que já lhe doíam. os braços que lentamente ficavam dormentes...e os olhos, claro, esses, que viam tudo, mesmo quando, de manhã, no caminho para o trabalho, estivesse nevoeiro. esses estavam exaustos.
tinha de ir descansar.
levantou-se e foi.
pedras frias

e começou a andar. ouvia-se apenas o martelar dos saltos na pedra. sintonizados, crescentes.
de repente parou. alguém, apressado, vinha atrás dela. ficou assim, petrificada, muda, como o frio que vinha da pedra. sabia que tinha de sair dali, que alguém a queria prender, mas as pernas não obedeciam e ali estava.
e os outros, os que vinham atrás, cada vez estavam mais perto...já eram as vozes deles que ouvia quase ali. as lágrimas começaram a cair. quantas saudades lhe surgiram de repente. memórias dos outros tempos em que, criança, por ali corria e ouvia as gargalhadas dos vizinhos, dos amigos, da mãe. a mãe...quanta ternura! o murmúrio de todos os dias; as palavras das pessoas que passavam; as mãos dos namorados que se entrelaçavam; os beijos que ali tinham roubados.agora, uma praça vazia.agora, pedras que eram apenas frias...
agora, vozes que vinham do medo. tudo estava ali. e eles, os outros, quase a gritarem-lhe aos ouvidos para parar. mas ela já estava parada, ela não conseguia andar, ela estava petrificada, ela, afinal, não queria ir. e levantou um braço. agitou os dedos, lançou o corpo para a frente. movimentou-se languidamente. um tiro. caiu. as pedras frias da praça receberam o corpo e os olhos, agora fixos no cinzento da pedra, sorriam serenamente.
sétimo degrau

dobrou a esquina. de repente as escadas.
começou a subi-las. eles estavam no sétimo degrau. eram dois. olhou para eles em silêncio. eles sorriram. quem seriam? que estariam a fazer ali? de onde tinham vindo. olhou para eles. nos olhos de ambos, uns castanhos, outros azuis, estava estampado o segredo da infância. eram rapazes ainda. e riam. quando ela apareceu eles deixaram de falar entre si e olharam para aquela mulher que tinha dobrado a esquina e começara a subir a escada.quem seria ela? que estaria ali a fazer? de onde teria vindo? estavam curiosos, mas ficaram em silêncio.
então, ela, a mulher, perguntou: que estão a fazer aqui?
eles, que continuavam sentados no sétimo degrau, olharam para ela com espanto. o que estavam a fazer ali?! ora, estavam ali.
era ali, no sétimo degrau que todos os dias estavam àquela hora.
e todos os dias, àquela hora, no sétimo degrau, contavam histórias um ao outro para o tempo passar.
mas nunca, até àquele dia, àquela hora, quando eles estavam sentados no sétimo degrau, a contar histórias para o tempo passar, tinha aparecido uma mulher que tivesse dobrado a esquina.
e isso era muito estranho. quem falara tinha sido o rapaz de olhos castanhos. o dos olhos azuis só ouvia, muito atento, a ver se o outro não se enganava.
e foi assim.
naquele dia, àquela hora, no sétimo degrau daquela escada, aquela mulher tinha dobrado a esquina e tinha falado com aqueles rapazes.
ela continuou a subir os degraus. eles lá ficaram a passar o tempo, contando histórias.
PARADO

tivessem tomado uma decisão. o rosto impávido.
nem um esgar de tristeza.
apenas ali parado.
de repente, passou um comboio... não se desviou. continuou ali parado.
eu, que estava do outro lado da linha, sentada na esplanada dum café qualquer da estação, observava. nunca vira tanta imobiliade.
pus-me a tecer considerações sobre as razões que levariam a que aquele homem estivesse ali. assim. tão parado. tão inerte.
tinha traços no rosto de alguém que não queria estar ali. parecia ser daqueles indivíduos decididos.
mas não. estava ali parado.
entretanto, já tinha bebido o meu chá. comido as torradas, com muita manteiga...sempre com muita manteiga!
a conta fora pedida. e agora vinha o empregado todo solícito entregar-ma. e eu que não queria. pretendia ficar ali, também, parada, a ver o que fazia aquele homem, ali, parado.
mas o empregado não deixava...sempre a passar pela minha mesa, com um olhar curioso e impertinente a controlar o pires onde deixara a conta...tive de pagar.
tive de me levantar.
tive de começar a sair daquele espaço.
o meu caminho era do lado oposto ao da linha para onde o homem estava virado e parado.
ainda olhei para trás à procura de um movimento. mas ele não aconteceu. ainda estava ali parado....passou outro comboio...
o tufo de flores muito especial

era um tufo de flores muito especial. nele podíamos encontrar quase toda a espécie de flores. girassóis, malmequeres, rosas, tulipas...mas o que era mais especial era o facto destas flores estarem sempre a falar, a puxar as pétalas umas às outras, a pedir às abelhas para picarem as amigas, a dizerem mal umas das outras. enfim, uma confusão. e, no entanto, eram muito engraçadas.
aquele tufo tinha vinte flores. umas amarelas, outras vermelhas, algumas cor-de-rosa...e, imaginem que, até por causa das cores, discutiam! era sempre uma confusão. e, no entanto, eram muito engraçadas.
um dia, chegou àquele tufo um cacto. ora, como sabem, os cactos têm a mania que sabem tudo. como têm aqueles picos fortes, julgam que assustam toda a gente. pois é, o cacto achou que aquele tufo tão cheio de confusão era o ideal para ele "governar". e instalou-se. a seguir começou a ditar ordens e a dizer como é que as flores deviam estar e ser. as flores, que não estavam habituadas a que alguém lhes dissesse como é que deviam ser ou estar, não reagiram até porque o cacto tinha aqueles picos que podiam ser muito dolorosos. foram fazendo o que o cacto lhes dizia.
os dias foram passando. depois, começaram a passar as semanas. a seguir os meses e, quando já tinham passado anos, as flores aperceberam-se que já não puxavam as pétalas umas às outras; já não pediam às abelhas para picarem as amigas e que já não diziam mal umas das outras. acharam, por isso, aquilo muito estranho.
já não havia confusão.
aperceberam-se, também, que já não se riam, nem brincavam como dantes. ora, como seria de esperar, começaram a não gostar da situação.
um dia, esperaram que o cacto fosse dar o seu passeio matinal e resolveram reunir-se. durante a reunião, umas diziam que preferiam o tufo assim. que estava mais sossegado e arrumado...no entanto, a maioria achava que viver daquela maneira não tinha graça. decidiram falar com o cacto logo que ele chegasse.
quando o cacto chegou, as flores disseram-lhe que estavam fartas das suas ordens. que queriam voltar a puxar as pétalas umas às outras; que queriam pedir às abelhas para picarem as amigas; que queriam poder tornar a dizer mal umas das outras. imaginem que o cacto até gostou da ideia. afinal, ele tinha gostado daquele tufo pela sua engraçada confusão.
os cactos, apesar da aparência dura, também têm um coração doce.
naquele dia

naquele dia, o miúdo não queria brincar. os amigos estranharam aquela atitude. ele costumava ser o primeiro a chegar à praia. e, quando eles lá chegavam, já ele construía os seus castelos de areia. mas, naquele dia, ele era outro.
acordara, de manhã, com uma grande vontade: queria que aquele dia fosse diferente de todos os que vivera - ele tinha apenas setes anos!... mas ao sentir a água gelada do duche a salpicar-lhe o corpo, tinha já a certeza daquela sua vontade.
foi para a praia. sentou-se na areia e estendeu o olhar pelo mar.
era tão lindo!!
o tempo que tinha perdido...estava ali. estava só, mas sentia-se bem.
de repente, começou a ouvir o burburinho das pessoas que vinham usufruir da frescura à beira-mar.as vozes dos companheiros chegavam até ele longínquas.
não queria estar com eles.
permanecia, ali, no esquecimento do passado. naquele dia ele construíra castelos de sonhos.
entretanto caiu a noite e o mar ficou escuro.
avô

queria chorar...apetecia-lhe lavar os olhos com lágrimas. há tanto tempo que não o fazia. a última vez tinha sido quando o avô morrera. que dor. fora a primeira vez que sentira, deveras, a dor da perda. eram tantas as saudades que já tinha...e ainda há poucas horas ele partira.
ia a caminho do trabalho, quando a mãe, com a voz embargada de dor, lhe telefonara a dizer o que tinha acontecido: "rosi...o avô morreu." rapidamente a estrada deixou de estar nítida. as curvas deixaram de existir...e a memória de outros tempos percorreu-lhe o corpo.
tinham sido tantas as palavras, os momentos partilhados. não queria que o avô tivesse morrido. por isso fingiu, durante breve segundos, que aquele telefonema não tinha acontecido. e continou a ouvir a rfm. depois, como uma vaga...teve de parar. as mãos tremiam. os olhos não deixavam de chorar. teve de parar o carro.
saiu. gritou. quis voltar atrás no tempo e abraçar o avô. tantas vezes, quantas as que fossem necessárias para que ele se sentisse confortável.
que dor.
que solidão.
que angústia.
e as lágrimas caíram, outra vez.
a menina solitária

era uma vez uma menina. vivia sozinha. todos os dias se levantava para ir dar de comer aos animais da quinta. era ela que tratava dos bichos, da horta e da casa.
um dia, passou pelo portão um menino. parou e vendo-a regar as flores, perguntou-lhe se vivia sozinha. ela respondeu-lhe afirmativamente e ele, então, quis saber porquê. tinha gostado dela e queria ser seu amigo. ela sorriu, baixou os olhos e continuou a regar as flores.
durante um mês continuaram a aparecer mais meninos que repetiam sempre a mesma pergunta. e a menina dava sempre a mesma resposta. então, quando já não havia mais meninos...quando veio o último menino, a menina olhou para ele e já não sorriu. aproximou-se e disse:
- estou sozinha porque quero. escolhi viver assim. podia estar acompanhada, mas não quero. tenho amigos e, no entanto, eles não me perguntam porque vivo sozinha. aceitam-me como sou. estamos muitas vezes juntos, mas, à noite, cada um vai para a sua casa e se nos queremos rir, conversar ou precisamos de ajuda, encontramo-nos sempre. somos amigos.

a oportunidade



a oportunidade

era cedo...o sol ainda não tinha acordado.
as nuvens estavam fechadas. aquele ia ser outro dia de solidão.
o homem levantou-se. brevemente apareceria o dono do café em cuja entrada, habitualmente, pernoitava. era um sítio agradável, apesar de tudo. claro que não se comparava ao quarto que durante tantos anos partilhara com a mulher...mas disso não se queria lembrar!!!!!!
e, no entanto, eram essas as recordações que ainda o faziam acordar todos os dias. ainda tinha a esperança de um dia poder voltar a mergulhar naqueles lençóis perfumados...e os filhos...ainda por cima naquela época. o natal. as ruas estavam iluminadas. ouviam-se cânticos natalícios...já cheirava a família.
que saudades.
mas tinha vergonha.
faltava-lhe a coragem de voltar a casa.de mostrar aos seus filhos que tinha falhado.
era um falhado.
agora aquele era só outro dia.
e o homem do café que ainda não tinha chegado.
estava atrasado. será que lhe tinha acontecido alguma coisa!!!!??....talvez a mulher tivesse à sua espera...porque não telefonava!!??
não.
a sua vida agora era ali.
já não tinha forças.
deixara a oportunidade de uma vida feliz ao lado da sua vida.
- olha...lá vinha o dono do café. sempre ia ter o leite com chocolate e o pão com manteiga.
o dono da café até era simpático.
o sol começava a querer passar por entre as nuvens. iria ser um dia menos cinzento que os outros?!...

o país das nuvens cinzentas

o país das nuvens cinzentas

era uma vez, há muito tempo atrás, um país.
nesse país moravam quinze meninos muito traquinas...um dia, um dos meninos resolveu ir à floresta apanhar cogumelos.
quando andava de árvore em árvore, à procura de cogumelos no chão, deparou com uma menina muito bonita a dormir. sentou-se e ficou a admirar o seu sono. passadas algumas horas, o menino que estava sentado na relva a olhar para a menina de cabelos castanhos e pele branca a dormir, começou a ouvir, lá muito longe, o seu nome .
levantou-se e viu que já não havia sol. percebeu, então, que os seus amigos deviam andar à sua procura, preocupados. chamou-os e ficaram os quinze a olhar para a menina que dormia debaixo de uma árvore. de repente, ela abriu os olhos. eram castanhos. sorriu e perguntou-lhes quem eram eles. eles disseram que eram quinze meninos muito traquinas que moravam naquele país. de imediato, ela começou a chorar. e por entre as lágrimas ia dizendo que chorava, porque não tinha, como eles, amigos.
depois destas palavras, os meninos muito traquinas, que moravam naquele país, juntaram-se num círculo e, a seguir, aquele que encontrara a menina muito bonita a dormir debaixo de uma árvore, perguntou-lhe: "- queres vir morar connosco? nós somos muito traquinas, mas também gostamos de brincar com as flores, apanhar as nuvens, quando elas estão muito cinzentas e saltar de estrela em estrela, quando o céu brilha muito."a menina de cabelos castanhos e pele branca sorriu e declarou que queria ir morar com eles. deu um beijinho a cada um dos meninos e acompanhou-os. finalmente, ia ter um lugar, aquele país, para brincar com flores, apanhar nuvens, quando elas estivessem muito cinzentas e saltar de estrela em estrela, quando o céu brilhasse muito.

uma floresta diferente

uma floresta diferente


estava frio, muito frio, ninguém conseguia entrar ali: as flores estavam a murchar, os pássaros já não cantavam, os rios tinham secado e até os troncos de árvores pediam às raízes para morrer. o sofrimento era muito.

ninguém conseguia entrar ali.

há muito tempo que estavam sozinhos: sem flores, pássaros, rios e árvores frondosas. tudo começara quando as flores resolveram começar a ser vaidosas,... muito vaidosas!

depois, os pássaros acharam que não deviam encantar os habitantes daquela floresta, com a sua música. os rios, quando se aperceberam que as flores eram vaidosas e os pássaros já não cantavam, resolveram começar a passar por outras florestas mais simpáticas. então, as árvores que já não tinham as flores para conversar, os pássaros a usar os seus troncos e os rios a arrefecerem as suas raízes, começaram a sofrer. primeiro devagar e depois com muita dor. de tal maneira que andavam a pedir às raízes para secarem definitivamente. ao todo eram vinte e dois: treze flores, quatro pássaros, três árvores e dois rios.

um dia, chegou à floresta uma fada. como estava frio, com a sua varinha de condão, fez aparecer um casaco. e como era a "fada da natureza" quis saber por que razão aquela floresta estava tão fria. entrou e foi notando que as flores estavam a murchar, que os pássaros já não cantavam, que os rios tinham secado e que, até, os troncos das árvores pediam às raízes para morrer. achou aquilo tudo muito triste...e como era muito sensível começou a chorar. ora, as suas lágrimas foram regar as flores que começaram a desabrochar. e a fada continuou a chorar, porque os pássaros ainda não cantavam, nem os rios enchiam, nem os troncos das árvores deixavam de pedir às raízes para morrer. e a fada chorou tanto que, de repente, os pássaros, como as flores já estavam bonitas, começaram a cantar. e, sendo tantas as lágrimas da fada, os rios deixaram de secar, logo, os troncos das árvores já não queriam morrer...

então, a fada começou a rir. e as suas gargalhadas eram tão bonitas que todos os animais da floresta ouviram e quiseram saber o que se passava. e tudo ficou belo e maravilhoso como dantes. e, porque se sentia tão bem ali, a fada escolheu aquela floresta para ficar a morar.

ainda era cedo

ainda era cedo

era cedo. de manhã custava sempre a levantar. o frio lá fora era intenso e as pernas recusavam-se a saltar debaixo dos lençóis. seria preguiça, talvez...mas, naquele dia, era, também, um medo imenso do que lá estava fora à espera.
todos aqueles meses à espera...tanta ânsia esgotada...tantos nervos, noites mal dormidas.
mas tinha de ser. o duche já estava atrasado e a boleia, de certeza, que não esperava.
pensava agora no trânsito de todos os dias...era tanto pela manhã! e as pessoas?!
havia gente que via todos os dias e cujos sorrisos jamais se tinham mostrado.
que preguiça...
o primeiro cigarro matinal ia queimando por entre as notas musicais saídas das colunas do rádio...
as gargalhadas dos locutores que não deixavam enganar alguma nostalgia...
rotina.
aquele dia ia ser diferente.
tinha de lá ir. afinal era por aquilo que esperava há tantos meses!
talvez o encontrasse, talvez ainda pudessem falar.
talvez fosse ainda viável um reencontro...
não. seria, certamente, de novo, o pesadelo: as esperas que nunca terminariam. os silêncios que jamais seriam interrompidos...
tinha de se levantar.
já estava atrasada.
o duche já estava à espera.
o café com o cigarro teriam de ficar para tarde.

o mundo das fadas e dos bruxos

o mundo das fadas e dos bruxos

esta história podia começar assim: “era uma vez…”podia, mas não começa. e não começa porque esta história é real. é verdadeira.
passou-se há muitos anos atrás, quase no mundo dos sonhos, num país distante, muito distante. mas, ainda assim, aconteceu...
ora bem, naquele país era hábito a fada das fadas fazer grupos de trabalho. e todos os anos, no dia 13 do 13º mês, janebro, pelas 13h00, ela informava as outras fadas e bruxinhos dos seus grupos. naquele ano, que, por acaso, também era o 13º da vida daquele país, a fada das fadas fez um grupo muito giro: juntou 6 aprendizes (4 fadas e 2 bruxos) que já se conheciam há muito tempo com 3 fadas do outro mundo e dois bruxos extraterrestres.
no total, eram 11 membros. e, se, no princípio, era muito difícil trabalhar com eles, porque estavam sempre a falar, fazer barulho, fazer perguntas e a faltar às sessões de aprendizagem para se ser fada e bruxo - o mais grave de tudo…-, no final, as sessões corriam às mil maravilhas. os 11 aprendizes já não falavam, não faziam barulho, nem perguntas e deixaram, mesmo de faltar às sessões. eles eram de tal maneira excelentes que as fadas-mestres e os bruxos-mestres começaram a gostar muito deles, tendo decidido eleger aquele grupo de aprendizes como um dos melhores de sempre. Todos ficaram muito felizes.
ora, como todos os meninos e meninas sabem, as fadas e os bruxos têm sempre uma função. naquele grupo todos participavam e por isso é que conseguiram ter sucesso:
a fada andriovochi tinha de regar todos os dias as plantas que cresciam no alto das cabeças das fadas e bruxas aprendizes; a fada brunaiovichi querioti tinha de cortar as ervas daninhas dessas plantas, todos os dias; a bruniovichi gomighi tinha de controlar as fadas andriovochi maroti e bruniovichi querioti; o carliovichi simiovichi tinha de contar todos os dias uma anedota; a carliovichi barriovichi tinha de ralhar diariamente com o carliovichi simiovichi por causa da anedota, o celsovichi ferreirovichi tinha de ler um poema; a filipiovichi joãovichi e o hugovichi mauriovichi tinham de jogar ao monopolovichi todas as tardes; a marlinovichi polovichi tinha de controlar o jogo de monopolovichi. por fim, o pedrovichi e a sandriovichi tinham de fazer todos os dias um bolo de chocolate.
afinal, é tão simples ser fada ou bruxo...

era só um miúdo

era só um miúdo

na minha terra, havia um homem que não tinha um dos olhos. por isso, toda a gente o tratava por zarolho. toda a gente, não. os adultos só o faziam, quando ele não estava presente e, mesmo assim, só aqueles que por um motivo ou outro não gostassem dele.
eu e os meus colegas da escola costumávamos esperar que ele chegasse de autocarro para depois o perseguirmos. nessa perseguição, íamos sussurrando: z, z, z, zar, zaro, zarolho... e depois desatávamos a correr, porque ele, danado, punha-se a atirar-nos pedras e a dizer que um dia se havia de vingar. eu, do grupo, era aquele que dava menos importância ao homem. achava piada à atitude dele: era tão grande e agia como uma criança. no entanto, os meus colegas, todos os dias, inventavam alguma história nova para arreliar o pobre do homem...
a pior de todas foi quando eles decidiram que o filho do tal homem também devia ser gozado. eu ainda tentei fazê-los mudar de ideia, mas eles nem me quiseram ouvir.
e foi assim que tudo se passou: no dia de uma semana qualquer, quando o miúdo ia para casa sozinho, resolveram acompanhá-lo. éramos quatro (acabei por entrar na “brincadeira” já que fazia parte do grupo...). um ultrapassou-o, dois ladearam-no e eu caminhava atrás. depois de cinco minutos, em silêncio, apressando o passo, quando ele o fazia e desacelerando-o, quando, desesperadamente, tentava escapar-nos, o pobre rapaz foi ouvindo, enquanto aguentou, as nossas ‘bocas’.
a certa altura, não suportando mais, parou, agarrou em pedras e começou a atirá-las. como éramos quatro, a sua tentativa desesperada de defesa não deu resultado: conseguimos prender-lhe as mãos. e os meus colegas empurraram-no, começando-lhe a bater.
fiquei paralisado.
gritei.
ninguém me ouvia.
deitei-me, então, sobre o miúdo. e só assim os outros pararam. olharam para mim com ódio e chamaram-me cobarde. não me importei nada. estava preocupado com aquele ser tão pequeno e que a chorar tremia nos meus braços. peguei nele ao colo e levei-o para sua casa.
dias mais tarde, e preocupado, porque não o tornara a ver na escola, fui lá a casa. quando cheguei, estava tudo em silêncio. as pessoas estavam vestidas de preto...
avancei por aquela pequena multidão e no fim dela estava uma caixa e dentro uma criança: o filho daquele homem tão grande que, àquele canto sentado a chorar, parecia tão pequeno...
quis saber como tinha sido...disseram-me que se tinha suicidado.
fiquei horrorizado. naquele momento odiei-me a mim próprio. tive vontade de esganar os meus colegas.
agora, e passados que são tantos anos, tenho pena desses colegas... nunca mais fui capaz de olhar para eles. de mim continuo com ódio.
estou sozinho na vida. naquele dia aprendi que jamais poderia fazer alguém feliz!

aquela escola...que saudades!!!

aquela escola...que saudades!!!

a escola estava escura. estava tudo muito escuro. mas o pedro entrou. aquela tinha sido a sua escola. fora lá que ele começara a ser aquilo que hoje era. e ele tinha prometido à sua antiga e simpática professora que havia de lá voltar. escolhera aquele dia ao acaso. e, ao acaso assistira ao funeral dessa grande dama.
uma lady!!...como pudera ter esquecido de responder às suas cartas!?...como poderia ser perdoado por nunca mais ter voltado!?...agora já era tarde. ao menos cumprira a promessa feita há tantos anos: voltar àquele lugar, para ele, quase sagrado...entrar por aquele portão, enferrujado e irritante, era entrar no seu envelhecido e já esquecido mundo de sonhos...
pareceu-lhe ouvir, de novo, os colegas de outrora a gritar, a rir; as meninas a jogar ao elástico ou à corda...os rapazes a jogar futebol, à apanhada...e, como na altura, o mundo lá fora parecia tão grande!!...
agora, era aquela escola, aquele recreio que se transformavam, aos olhos do mundo, num ponto simplesmente cinzento, triste, nublado, quase invisível.
sentou-se. os degraus estavam sujos. mas que importava: a sua mestra tinha desaparecido e a sua escola já não era escola.
sentiu algo a roçar-lhe as pernas. um gato: grande, olhos verdes, brilhantes, pêlo castanho e macio. apercebeu-se, então, da noite. quantas horas ali? não sabia. não importava. a escola estava escura e a amiga de outrora já não o podia chamar. naquele presente restava apenas a saudade.

boneca

boneca

lá longe, onde a neve não derrete porque não existe; onde o sol é quem aquece as casas no natal, recebi, há muitos anos atrás, a mais linda prenda natalícia. recordo-me como se fosse hoje da alegria com que descobri ser aquela pequena bonequinha para mim...
andara com a mãe, irmãos, amigas e filhos de amigas a fazer compras. no saco das da mãe constava aquela pretinha. gorducha, cabelos negros, compridos e despida. talvez a mãe a tivesse adquirido por me ter visto a olhar para ela. não sei. fiz desse momento uma das muitas fotografias de áfrica. outra entre tantas por mim carregadas até hoje!!...já lá vão alguns anos e ainda não me esqueci desses minutos de rara e estranha felicidade.
claro que não me atrevi a perguntar para quem era aquele tesouro, mas com que ansiedade esperei pela manhã de vinte e cinco de dezembro daquele ano! creio ter sido esse – o momento em que desembrulhei aquela prenda – um dos mais mágicos da minha meninice, e mesmo longe do frio, da chuva, da neve, da lareira, aquele foi o melhor natal de sempre.
...e ainda trago comigo aquela boneca!

natal antecipado

natal antecipado

já era de manhã.
o joão abriu os olhos e virou-os de imediato para a janela. o sol brilhava.
deitara-se com a preocupação do tempo do dia seguinte: como estaria o dia, interrogara-se minutos antes de adormecer? !...
estava sol.
afinal, podia ter dormido sem essa preocupação.
aquele dia ia ser muito importante para ele.
há já dois anos que não via o pai. ele chegaria naquele dia, duma daquelas viagens intermináveis...
o joão gostava muito do pai e tinha pena que ele estivesse tão pouco tempo em casa...seria óptimo poder de novo abraçá-lo. os abraços do pai eram imensos: grandes, grandes...e depois também havia as prendas...e agora, próximo do natal, de certeza que seriam giríssimas!
já estão na estação: ele e a mãe.
corre, corre como um louco. atravessa toda a estação como um foguete, ouvindo apenas a voz da mãe lá longe como se fosse um passarinho em cima de uma árvore: joão, joão...tem cuidado...olha que ainda cais...joão...
mas o joão voa. é já uma águia!
e lá está o pai. que saudades!
quer ser o primeiro. ninguém pode tocar no seu pai antes dele. nem a mãe. tem de ser o primeiro:- estou a chegar, estou quase a chegar...- joão, joão...acorda!
o joão abre os olhos.
não, não era natal ainda...o pai (ainda) não ia chegar.............................

outras árvores

outras árvores

um dia, o rui saiu de casa e perdeu-se no caminho para a escola, tendo ido parar a um lugar cheio de árvores raquíticas, cinzentas, flores murchas, relva preta e, sobrevoando o lugar, bichinhos fedorentos e escuros.
vendo-se ali, o rui sentiu medo. quis sair dali, ir embora, voltar à sua casinha...mas o pavor era tanto e tão forte que as pernas não conseguiam obedecer a essa vontade.
os seus olhos começaram a largar lágrimas: de início poucas e pequenas, depois, conforme a solidão o ia devorando, saíam violentas e em catadupa. também queria gritar...a voz não saía...também queria gesticular...os braços eram chumbo. então, os joelhos foram dobrando até tocarem o chão. ali ficou. assim ficou.
passaram um dia, dois e o rui naquela posição. tudo era sempre igual: as mesmas árvores raquíticas, cinzentas, flores murchas, relva preta e, sobrevoando o lugar, bichinhos fedorentos e escuros.
passados três dias, o rui ouviu alguém a dizer o seu nome: finalmente ia ser encontrado. quis gritar, mas a voz não saía. já não tinha medo e, contudo, a voz não saía da garganta.
quis levantar-se. não conseguiu: os joelhos já não eram os seus. pertenciam agora, também, à terra. e, de novo, o pavor invadiu o medo de nunca mais poder sair dali, entrando-lhe por todos os poros do corpo.
nesse momento sentiu que algo dentro dele crescia. algo que ele não conhecia...passaram-se semanas, meses, anos, e o rui lá continuou.
já não era aquele menino que se costumava perder, quando ia para a escola. agora era mais uma daquelas árvores raquíticas, cinzentas que povoavam aquele lugar cheio de flores murchas, relva preta e sobrevoado por bichinhos fedorentos e escuros.

escolhas

escolhas

era sempre naquela altura que o pedro mais pensava no pai. Como era bom quando o pai estava: ele chegava e a casa ficava logo mais pequena. era a voz, a maneira de andar, os gestos...até aquele tique de mexer constantemente no bigode enquanto ouvia alguém falar.
mas agora o pai não ia voltar.
a mãe dissera-lhe que ele tivera um trabalho urgente e tinha de estar longe por alguns anos. e, no entanto, o pedro, sem saber muito bem porquê..., não acreditava na mãe. já não seria a primeira vez que ela mentia...também que importava, ele tinha de se habituar à ideia de um dia ficar sozinho! pelo menos todos lhe diziam isso: que para ser um homem tinha de ser sozinho e forte...e tinha o tal trabalho de ser logo na altura do natal que era quando o pai passava mais tempo em casa: brincava com ele, o levava a passear no carro velho, com aqueles barulhos tão estranhos?!...
não conhecia o patrão do pai, mas já não gostava dele. quando o conhecesse havia de saber qual era o seu carro e depois furarava-lhe os pneus.
talvez a mãe estivesse mesmo a mentir e aquela fosse outra das zaragatas entre eles. sim, era isso. tinha de ser isso. preferia ouvir gritos, gente zangada, do que não ter o pai em casa no natal...

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

o jantar




o jantar

todos os anos era aquele aborrecimento. tentava sempre arranjar maneira de se esquivar àquele cansativo, enfadonho encontro, mas o joão não aceitava. vinha logo com a conversa de não ser conveniente aparecer sozinho. que os outros sócios iriam pensar que havia algum problema entre eles. e que depois, no escritório, começariam os comentários irónicos.
tão cansativo era ter de ir ao tal jantar como ouvir a argumentação do joão, por isso, nem insistia e lá se arranjava para o compromisso. afinal seria apenas e tão só outra noite.
maçadora, mas outra noite.
desta vez desconhecia o local. pelo menos teria a oportunidade de se ir distraindo com a decoração. e com tanta coisa para fazer. perda de tempo!
cedências numa relação que se mantinha equilibrada, ainda assim. abriu a janela do carro, já em movimento, e olhou de soslaio para o joão. sorriu: amava aquele homem.
chegados ao restaurante, foram recebidos numa ante sala onde estavam quase todos. distribuiu sorrisos, alguns beijos, e pequenas frases feitas trocadas...
entretanto, foram chamados para a sala de jantar.
a decoração era excelente. as cores discretas, quentes. a iluminação fantástica. sentou-se e não pôde deixar de sorrir. afinal até se estava a sentir confortável. começaram a ser servidos e, ao som dum piano distante, ouviam-se pequenas gargalhadas, sussurros de conversas...
o joão tocou nas suas mãos, num gesto terno e cúmplice.
a dada altura, discretamente, conseguiu conquistar algum silêncio, alheando-se das conversas dos outros, e olhou para o tecto...
os seus olhos ficaram cativos do candelabro. semicerrou-os e deixou-se embalar pelo som cada vez mais longínquo do piano...descia, agora, uma escadaria enorme. ao fundo, do lado esquerdo, uma porta: o princípio de um salão vazio de pessoas, onde existia somente o candelabro e alguém que a esperava à entrada.
deixou-se conduzir até ao centro e, em sintonia com a melodia que viajava por aquele espaço, os corpos deslizaram pelo salão harmoniosamente.
e, quando a música...tocaram-lhe no ombro. era o joão que a chamava. alguém queria saber qualquer coisa. respondeu e fechou, de novo, os olhos. mas o momento anterior terminara.
perdera-o.

(foto: candelabro, wind)

àquela hora


àquela hora

teve vergonha. foi para dentro. era uma menina. olhos e cabelos pretos, nariz arrebitado, franzina. todos os dias, àquela hora, vinha regar as plantas.
naquele dia ainda tinha de ir a casa da avó...e aqueles senhores agora, ali, com uma máquina esquisita apontada para ela.
que disparate de tempo perdido. que estariam eles a fazer ali?!... - perguntava em silêncio.
àquela hora não estava ninguém em casa. todos tinham ido trabalhar. só ela ali ficava. e a avó já devia estar à sua espera, mas ainda tinha de acabar de regar as plantas.
espreitou de novo. já se tinham ido embora. estavam mesmo ao fundo da rua, quase a desaparecer.
deitou, então, a água nas plantas, afagou-as com os seus deditos delicados e, fazendo aquele trejeito com o nariz que lhe era tão peculiar, foi buscar a cesta onde estava o lanche da avó. gostava de ir ver a avó. contava-lhe sempre histórias. daquelas que já não vinham nos livros.
desceu as escadas entoando a música da canção que ouvira nessa manhã na rádio. era bonita. tinha gostado.

(foto - à espreita, Diafragma)

Começar uma história...

Começar uma história...

ora bem, o espaço já está definido. encontrei-o por aí, perdido no meio de folhas pintalgadas de vermelho.
faltam, agora, as personagens.
ela, uma princesa. alta, elegante, distante, de olhos azuis profundos e brilho misterioso. cabelos loiros, compridos, de pescoço esguio e sensual.
os trajes, verdes.
ele deverá ser nobre, mas feroz defensor dos pobres, liderando as hostes que tentam derrotar o soberano algoz que espalha o terror pelas aldeias, queimando casas e dizimando colheitas.
talvez moreno de fortes olhos negros, com traços rebledes, cabelo crespo.
ou não. logo se verá.
o tempo surgirá no momento em que as primeiras letras forem escritas: "era uma vez..."
a acção: uma incógnita. o princípio ainda está por desvendar.

o jardim à frente de casa...


o jardim à frente de casa...


perguntou à mãe se podia ir brincar para a rua. a mãe respondeu-lhe afirmativamente, dizendo que não saísse do jardim que ficava à frente de casa.

ele saiu.
estava calor e àquela hora, provavelmente, não iria encontrar ninguém para brincar. mas preferia ir para a rua a ficar em casa e ter de ouvir as discussões dos pais. não havia maneira de pararem de discutir...
sentou-se no banco do jardim e olhou para o céu. estava sol, por isso teve de fechar os olhos.
e, enquanto fechava os olhos, apeteceu-lhe imaginar que não estava ali. que não era ele. que vivia noutro país. que era filho de outros pais. que era feliz.
e lembrou-se da avó.
lembrou-se do tempo em que avó o levava todos os dias ao rio. e, enquanto a avó lavava a roupa, ele com os primos brincavam dentro de água. sem medos, com gargalhadas e muita vida.
depois os primos tinham deixado de ir passar o verão com ele e a avó já não precisava de ir lavar a roupa ao rio. e os passeios ao rio tinham sido esquecidos por todos.
agora restava apenas o jardim e alguns amigos que ali apareciam ao fim da tarde.
cada vez havia menos gente na aldeia.
cada vez se sentia mais sozinho. no entanto, gostava de viver assim.
um dia, também ele, havia de partir. o pai andava sempre a dizer que haviam de partir.
já tinha tantas saudades e ainda não chegara o dia da despedida.
começou a ouvir passos. eram os amigos que se aproximavam. sempre tinha companhia.